Cerâmica Paulista

Plácido de Campos Júnior. Artesanato em cerâmica [Ceramic craftsmanship], Vale do Ribeira, 1980. Coleção Collection] Museu da Imagem e do Som, São Paulo
Plácido de Campos Júnior. Artesanato em cerâmica [Ceramic craftsmanship], Vale do Ribeira, 1980. Coleção Collection] Museu da Imagem e do Som, São Paulo

É comum lermos nos livros de história sobre uma aliança estratégica formada entre parte dos Tupiniquim e os colonos portugueses no projeto de conquista do território que hoje constitui o Estado de São Paulo. Não longe daqui, o Monumento às Bandeiras simboliza essa união de diferentes identidades num projeto de “desbravamento” do país. O que os livros de história não narram, e os blocos de granito não representam, são as formas como a violência colonial tem concatenado ao longo do tempo elementos retóricos e dispositivos institucionais para recalcar as marcas indígenas naquilo que hoje se reconhece como uma cultura paulista. Há toda uma estrutura, dos monumentos públicos a boa parte das aulas escolares e relatos populares, que retrata nossa identidade apagando essa memória.

Mas sempre há também forças trabalhando em direção contrária. Combinando precisão histórica, investigação arqueológica e reelaboração da memória, as pesquisas recentes de Marianne Sallum e Francisco Silva Noelli têm contribuído para suplantar ao menos um dos muitos hiatos criados pelo racismo contra os indígenas. Essas pesquisas mostram como a chamada Cerâmica Paulista, feita desde o século 16 até hoje, resulta da criação original de mulheres Tupiniquim que se valeram de um processo de intercâmbio de técnicas, repertórios e modelos com os colonizadores portugueses, como tática para a preservação de sua identidade. Ainda que à primeira vista os exemplares dessa cerâmica sejam muito distintos da produção tupiniquim pré-colonial, o olhar aproximado e comparativo de Sallum e Noelli revela a presença das Tupiniquim na seleção de matérias-primas, na composição da pasta cerâmica, na técnica do acordelado para levantar a parede das vasilhas, na temporalidade do processo construtivo e nos modos de tratar a superfície.

Apresentar na 34ª Bienal alguns exemplares da Cerâmica Paulista é uma forma de materializar o reconhecimento da ancestralidade dessa terra que nunca foi cedida. É também uma maneira de sublinhar a importância do trabalho sobre a memória como um modo de confrontar as narrativas usadas como justificativa de processos de espoliação, destruição e exploração que permanecem em curso. É, ainda, uma lembrança de que as coisas são mais complexas do que parecem, e que muitas vezes elas contêm em si mesmas as pistas para a inversão de seu sentido. Junto às obras aqui reunidas, ao falar de resiliência e persistência, estas cerâmicas remetem ao conjunto de trabalhos artísticos e aos elementos do Museu Nacional com que se inicia a visita à Bienal. No âmbito de uma mostra que tem como um de seus motes fundamentais o desejo de ampliar a leitura de qualquer obra de arte, a história da Cerâmica Paulista ajuda a complexificar nossa visão do presente. E a entender, quem sabe, de outras formas as obras que o visitante voltará a ver daqui a pouco, percorrendo a exposição em sentido inverso.





  1. Caroline A. Jones, Eyesight Alone: Clement Greenberg’s Modernism and the Bureaucratization of the Senses (Chicago: University of Chicago Press, 2005).
  2. Greenberg’s Modernism and the Bureaucratization of the Senses (Chicago: University of Chicago Press, 2005).
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