Cantos Tikmũ’ũn

© Giovanna Querido / Fundação Bienal de São Paulo
© Giovanna Querido / Fundação Bienal de São Paulo

Os Tikmũ’ũn, também conhecidos como Maxakali, são um povo indígena originário de uma região compreendida entre os atuais estados de Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo. Após inúmeros episódios de violências e abusos, os Tikmũ’ũn chegaram a beirar a extinção nos anos 1940 e foram forçados a abandonar suas terras ancestrais para sobreviver. Os cantos organizam a vida nas aldeias, constituindo quase um índice de todos os elementos que estão presentes em seu cotidiano – plantas, animais, lugares, objetos, saberes – e envolvendo sua rica cosmologia. Grande parte desses cantos, muitas vezes destinados à cura, é executada coletivamente. O ato de cantar se torna, entre os Tikmũ’ũn, parte integral da vida, porque é através do canto que se preservam as memórias e se constitui a comunidade. Cada membro da aldeia é depositário de uma parte dos cantos, que por sua vez pertence a um espírito – chamado Yãmîy, palavra que também designa os cantos –, convocado e alimentado durante o canto ritual. Todos os cantos, juntos, compõem o universo tikmũ’ũn, que é constituído por tudo que esse povo vê, toca, colhe, come, mata e sente, mas também pela memória de plantas e animais que não existem mais, ou que ficaram nos lugares de onde os Tikmũ’ũn tiveram que fugir para sobreviver. Como comunidade, vivem na língua que ainda praticam e defendem vigorosamente. Cantando.

Nesta segunda aparição no âmbito da 34ª Bienal, após a exposição Vento, que ocupou o Pavilhão Ciccillo Matarazzo em novembro de 2020, alguns cantos rituais tikmũ’ũn são incorporados à mostra para servir de contraponto poético e catalisador simbólico para um conjunto de obras que têm entre seus disparadores uma reflexão sobre a floresta como ecossistema a ser protegido, respeitado e temido, no qual as relações inextricáveis entre todos os seres se fazem visíveis ou até tangíveis.

Faz quase sempre escuro quando os Tikmũ’ũn começam a cantar. Seus cantos entram noite adentro, convocam os espíritos de cada ser que compõe o mundo, reúnem o que vemos e o que não podemos ver. No contexto de uma exposição concebida ao redor da necessidade e do poder do canto, tanto num sentido literal quanto metafórico, o exemplo dos Tikmũ’ũn ressoa de modo potente, inclusive do ponto de vista político: em sua prática, o esforço comunitário é constantemente renovado para nomear e assim construir coletivamente um universo. Assim como numa floresta cada elemento é essencial para a sobrevivência dos outros e para o equilíbrio do todo, cada conjunto de cantos é indispensável para que a totalidade seja sempre reavivada e reafirmada. Nenhum dos entes desse rico cosmos pode ficar para trás, a não ser ao custo de perder algo insubstituível – num mundo doente, no qual a necropolítica impera e consolida a indiferença e o descaso como instrumentos de governo, essa lição ressoa de maneira ainda mais urgente.





  1. Caroline A. Jones, Eyesight Alone: Clement Greenberg’s Modernism and the Bureaucratization of the Senses (Chicago: University of Chicago Press, 2005).
  2. Greenberg’s Modernism and the Bureaucratization of the Senses (Chicago: University of Chicago Press, 2005).
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