Dois bordados de João Cândido

João Cândido. Amôr [Love], c. 1910. Coleção [collection]: Museu Municipal Tomé Portes del Rei, São João del Rei, MG
João Cândido. Amôr [Love], c. 1910. Coleção [collection]: Museu Municipal Tomé Portes del Rei, São João del Rei, MG

Em 1888, com a promulgação da Lei Áurea, o Brasil se tornou um dos últimos países a abolir legalmente a escravidão. Apesar disso, a segregação e as violências seguiram, alicerceadas pelo racismo estrutural que até hoje caracteriza a sociedade brasileira. Na Marinha, que no final da primeira década do século 20 iniciava um processo de modernização tecnológica com a compra de dois encouraçados, oficiais brancos comandavam equipes formadas quase inteiramente por negros e mestiços, frequentemente forçados a alistar-se, e tinham direito de usar punições corporais. Após algumas tentativas frustradas de melhorar as condições de trabalho por meio de negociações, os marinheiros insurgiram-se em novembro de 1910, exigindo o fim dessa prática. Na insurreição, conhecida como Revolta da Chibata, eles assumiram o controle dos novos encouraçados e de dois navios menores, e apontaram os canhões em direção à capital. Em carta dirigida ao presidente da República e assinada por uma liderança da revolta – João Cândido, apelidado de Almirante Negro –, os marinheiros afirmavam não mais poder “suportar a escravidão na Marinha Brasileira” e exigiam uma reforma do “Código Imoral e Vergonhoso que nos rege, a fim de que desapareça a chibata, o bolo, e outros castigos semelhantes”.

A revolta foi bem-sucedida; o governo teve que capitular, conceder uma anistia aos marinheiros amotinados e proibir as punições corporais a bordo. Em pouco tempo, porém, praticamente todos os líderes da revolta foram presos, punidos ou mortos. Na masmorra da Ilha das Cobras, onde foi jogado na véspera do Natal de 1910, João Cândido viu dezesseis de seus dezessete companheiros de cela morrerem asfixiados pelas exalações da cal usada nas paredes. Nos quase dois anos em que ficou preso, Cândido costumava passar o tempo bordando, e produziu, entre outros, os dois bordados que se apresentam aqui. Em um deles, a palavra “amôr” se expande até não caber na faixa erguida por dois pássaros sobre um coração perfurado; no outro, dois braços vestidos com diferentes uniformes – um de almirante e outro de marinheiro – sustentam juntos o peso de uma âncora, entre as palavras “ordem” e “liberdade”.

O lirismo das composições contrasta com a imagem projetada sobre esse homem, filho de escravizados e herói revolucionário. Na solidão da masmorra, assombrado pela morte de seus colegas e traído pelo seu governo, Cândido se revela um homem mais complexo do que as narrativas sobre a sua biografia sugerem. Apesar de serem vistos como uma espécie de nota de rodapé da história, esses bordados possuem valor inestimável, por condensarem a necessidade e a possibilidade da expressão de nossas verdades e desejos mesmo em momentos em que parece não haver saída. Atestam, para além de qualquer dúvida, que cantar no escuro é possível e, talvez, a mais corajosa demonstração de força. Atestam, isto é, a convicção de que enquanto houver vida existirá luta e poesia, pois ambas, juntas, são partes inalienáveis da existência.





  1. Caroline A. Jones, Eyesight Alone: Clement Greenberg’s Modernism and the Bureaucratization of the Senses (Chicago: University of Chicago Press, 2005).
  2. Greenberg’s Modernism and the Bureaucratization of the Senses (Chicago: University of Chicago Press, 2005).
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